segunda-feira, 21 de abril de 2008

A humanidade possível

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) é sempre lembrado por sua mais conhecida obra, O Pequeno Príncipe, que, ainda hoje, encanta e seduz inúmeros leitores em todo o mundo. No entanto, o piloto e escritor francês teve outras obras publicadas, como Correio Sul (1928), Vôo da Noite (1931), Piloto de Guerra (1942), entre outras.
Em Terra dos Homens, livro publicado em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Saint-Exupéry narra e descreve os elementos essenciais que incorporam seu ofício de piloto de linha dos correios franceses. Assim, são apresentados os capítulos: A linha, Os companheiros, O avião, O avião e o planeta, Oásis, No deserto, No centro do deserto, Os homens.
Embora narre suas aventuras como piloto de linha, Terra dos Homens não é um livro de aventuras. É um retrato da experiência humana sobre a terra. A narração de um vôo ou dos dias em que esteve perdido em meio ao deserto, e a descrição de um avião, de uma paisagem ou de um homem, são sempre feitas de um modo extremamente poético que consegue exprimir um respeito e uma reverência profunda à essência daquilo que constitui o ser humano e a vida. Apesar de estar acostumado a olhar do céu a terra dos homens, é no chão, em contato com estes homens, que o poeta-aviador descobre que "só há um luxo verdadeiro, o das relações humanas".
Fazendo de sua própria vida e de sua própria história a matéria de sua escrita, Saint-Exupéry encontra a revelação de novas e sutis realidades a cada traçado do caminho e transmite estas revelações de maneira sublime.
É impossível não lembrar a narrativa d' O Pequeno Príncipe ao se deparar com frases como esta: "A experiência mostra que amar não é olhar um para o outro, mas olhar junto na mesma direção." - frases que, a exemplo de "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" ou "O essencial é invisível aos olhos", de tão repetidas, tornam-se até mesmo banais. No entando, a qualidade das imagens, da linguagem, da visão poética e porém simplificada das coisas, supera as comparações e as expectativas, surpreendendo e encantando a cada página.
Depois de dois dias perdido no deserto, sem comida e sem água, a descoberta de uma laranja ilumina toda uma realidade:

Deitado junto ao nosso fogo noturno contemplo a fruta luminosa e digo para mim mesmo: "Os homens não sabem o que é uma laranja..." Digo também: "Estamos condenados, mas agora também esta certeza não me estraga o prazer. Esta metade de laranja que tenho na mão é uma das maiores alegrias de minha vida..." Estico-me de costas, chupo minha fruta, conto as estrelas cadentes. E aqui estou, por um minuto, infinitamente feliz. Penso ainda: "Não podemos compreender o mundo em que vivemos se não nos encerramos em nós mesmos". Só hoje compreendo o cigarro e o copo de rum do condenado à morte. Não concebia como ele podia aceitar essa miséria. Contudo ele sente nisso um grande prazer. A gente pensa que ele é corajoso porque sorri. Mas ele sorri porque bebe seu rum. Não sabemos que ele mudou de perspectiva e que fez, da derradeira hora, uma vida humana.

O olhar poético não impede, porém, que Saint-Exupéry lance sua crítica à tolice dos homens:

Não compreendo mais essas populações dos trens de subúrbio, esses homens que pensam que são homens e que entretanto estão reduzidos por uma pressão que eles mesmos não sentem, como formigas, ao uso que deles se faz. Como enchem eles, quando estão livres, seus absurdos pequenos domingos?

Diante da iminência da morte de sede no deserto, o escritor encontra a serenidade da realização humana em vida, afinal, "o que dá um sentido à vida dá um sentido à morte":

Quanto a mim, sou feliz na minha profissão. Sinto-me um camponês do ar. No trem de subúrbio sofro uma agonia bem mais amarga do que esta. Aqui, feitas as contas, que luxo!
Não me queixo. Joguei, perdi. Faz parte de minha profissão. Mas assim mesmo eu respirei o vento do mar!

As preocupações mesquinhas, a capacidade para a guerra, a miséria - o lamento final do "poeta do céu" diz respeito a tudo aquilo que cerceia a humanidade no homem, tirando-lhe todo e qualquer sentido.

O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.

Terra dos Homens é um belo relato da simplicidade possível, da grandeza possível, da humanidade possível.



TERRA DOS HOMENS
AUTOR: ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
EDITORA: NOVA FRONTEIRA
DATA: 2006
NÚMERO DE PÁGINAS: 144

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Uma busca e um encontro

Herman Hesse (1877-1962), escritor alemão naturalizado suíço, é um dos principais nomes da literatura mundial. Entre suas obras, estão Demian (1919), O lobo da estepe (1927), Narciso e Goldmund (1930), O jogo das contas de vidro (1943), Viagem ao Oriente (1959). Em 1946, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Tendo viajado para a Índia, o contato com esta cultura acabou repercutindo em seus livros, que expressam todo o fascínio da sabedoria oriental. Sidarta, romance publicado em 1922, é um livro que aborda diretamente a cultura e filosofia hindu, apresentando e questionando doutrinas e buscando compreender o paradoxo essencial da unidade na multiplicidade da existência.

Sidarta é a história de uma busca e de um encontro. O menino Sidarta, nobre filho de brâmanes, é criado nas tradições e instruções religiosas para se tornar ele próprio um sacerdote, mas sua busca pelo essencial, pelo "caminho dos caminhos", leva-o a deixar a casa paterna e juntar-se aos samanas, grupo de peregrinos ascetas. Acompanhado do amigo Govinda, Sidarta dá início a uma vida de mortificação do corpo e aniquilamento do eu, por meio de práticas de jejum e meditação.

Úm único objetivo surgia diante de Sidarta; o objetivo de tornar-se vazio, vazio de sede, vazio de desejos, vazio de sonhos, vazio de alegria e de pesar. (p. 28)

Após três anos vivendo como um samana, Sidarta percebe que o caminho que vinha trilhando era apenas um modo de fugir de si mesmo e não de encontrar a sabedoria que buscava. No entanto, começa a desconfiar do próprio desejo de saber:

Gastei muito tempo e ainda não cheguei ao fim, para apenas aprender isto: que não se pode aprender nada! Acho eu que a tal coisa que chamamos "aprender" de fato não existe. Existe, sim, meu amigo, uma única sabedoria, que se acha em toda a parte. É o Átman, que está em mim e em ti e em qualquer criatura. E por isso começo a crer que o pior inimigo dessa sabedoria é a sede de saber, é a aprendizagem. (p. 34)

Embora duvidando de aprendizagem e ensinamentos, Sidarta parte, juntamente com Govinda, em direção a Gotama, o Buda, que, com sua doutrina, ensinava a compreender e superar o sofrimento.
Ao encontrar-se com Buda, Sidarta reconhece a presença de um ser realmente iluminado, e, no entanto, fortalece sua convicção de que não encontrará o que procura através de mestres e doutrinas. Descobre que o único caminho possível é voltar-se ao próprio eu, penetrando na essência de sua própria personalidade e de sua alma.

Era meu desejo conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo. Porém não pude superá-lo. Apenas logrei iludi-lo. Consegui, sim, fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente, nada neste mundo preocupou-me tanto quanto esse eu, esse mistério de estar vivo, de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos do que sei quanto a mim, Sidarta! (p. 54)

A partir deste momento, Sidarta, agora sem Govinda, inicia uma vida mundana, despertando para o mundo físico e experimentando todos os apelos e aprendizagens dos sentidos. Torna-se comerciante rico e amante da cortesã Kamala. Entregando-se ao que antes considerava o mundo ilusório dos fenômenos, Sidarta vai envelhecendo e afastando-se de sua busca e de seu conhecimento anterior, até perder-se totalmente em desespero e sofrimento. A convivência entre os homens tolos transformou o próprio Sidarta no mais tolo dos homens.
O momento do novo despertar ocorre à beira de um rio e do suicídio.

Então chegara àquele extremo; perdera-se a tal ponto; andara tão alucinado, tão néscio que chegara a almejar a morte, permitindo que aquela ânsia, aquele desejo próprio de uma criança crescesse nele. Quisera encontrar sossego, ao exterminar o próprio corpo. O que todos os tormentos daqueles últimos tempos, todas as desilusões, todo o desespero não haviam conseguido fazer, produzia-se naquele instante, quando o Om penetrava na sua consciência: em meio a sua miséria e a seus equívocos, reconheceu-se a si mesmo. (p. 105)

Com a compreensão de que todo este sofrimento fora necessário para chegar aonde estava, Sidarta abandona novamente sua existência anterior, tornando-se um balseiro junto a Vasudeva, e começa a receber lições do rio. Aprende a escutar, a abaixar-se e procurar nas profundezas de si mesmo, a reconhecer a inexistência do tempo, a eternidade de cada instante e a unidade de todas as coisas em meio à multiplicidade da vida.
Outra grande lição, Sidarta aprende através de seu filho com Kamala. O apego e as preocupações de pai transformam-se em novo sofrimento, que Sidarta compreende como necessário para mais uma aprendizagem. Lembrando-se do pai e do modo como tinha abandonado sua casa para nunca mais voltar, toma consciência da circularidade da existência:

Tudo voltava, todos os sofrimentos que não tivessem encontrado uma solução final. Era preciso suportar sempre as mesmas aflições. (p. 154)

Mais uma vez, o rio é fonte de sabedoria, e Sidarta revê toda sua existência em suas águas, e sua voz e todo seu sofrimento juntam-se a milhares de outras vozes:

Tudo era uma e mesma coisa, tudo se entretecia, enredava-se, emaranhava-se mil vezes. E todo aquele conjunto, a soma das vozes, a totalidade das metas, das ânsias, dos sofrimentos, das delícias, todo o Bem e todo o Mal, esse conjunto era o mundo. Esse conjunto era o rio dos destinos, era a música da vida. (p. 158-9)

E então, incorporando-se na unidade, Sidarta encontra a iluminação:

Foi nessa hora que Sidarta cessou de lutar contra o Destino. Cessou de sofrer. No seu rosto florescia aquela serenidade de saber, à qual já não se opunha nenhuma vontade, que conhece a perfeição, que está de acordo com o rio dos acontecimentos e o curso da vida; a serenidade que torna suas as penas e as ditas de todos, entregue à corrente, pertencente à unidade. (p. 159)

O livro termina com um último reencontro entre Govinda e Sidarta, em que este compartilha aquela que considera a maior aprendizagem de todas: o amor.

Quanto a mim, as coisas podem ser mera aparência, neste caso, também eu sou aparência, e assim serão elas sempre meus iguais. Eis o que as tona para mim tão caras e venerandas: são como eu. Por isso posso amá-las. E com isso te comunico uma doutrina que te fará rir, ó Govinda: tenho para mim que o amor é o que há de mais importante no mundo. Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim interessa exclusivamente que eu seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não odiar nem a ele nem a mim mesmo, de contemplar a ele, a mim, a todas as criaturas com amor, admiração e reverência. (p. 170)

Sidarta é a história de uma busca e de um encontro. A iluminação como realização plena do ser humano, em toda sua miséria e em toda sua grandeza, e a descoberta da sabedoria não como doutrina, mas como experiência viva. A salvação possível em encontrar o próprio caminho.
Um texto fascinante, uma história mágica e um autor por quem dificilmente um amante de literatura não se apaixona - Sidarta é uma grande inspiração para aqueles que buscam alguma coisa.


SIDARTA
AUTOR: HERMAN HESSE
TRADUÇÃO: HERBERT CARO
EDITORA: RECORD
DATA: 2006
NÚMERO DE PÁGINAS: 176

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Uma fábula da condição humana

“A consciência da laceração implica o desejo de harmonia”
(Italo Calvino)

O visconde partido ao meio, romance publicado em 1951, faz parte, juntamente com O barão empoleirado (1957) e O cavaleiro inexistente (1959), da trilogia Os nossos antepassados, de Italo Calvino. O escritor, nascido em Cuba e criado na Itália, é considerado um dos principais nomes da literatura mundial do pós-guerra, e conhecido por obras como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972), Se um viajante numa noite de inverno (1979), entre outras. O visconde partido ao meio é a história de um homem dividido. Literalmente. O visconde Medardo di Terralba alista-se na guerra dos cristãos contra os turcos e, em sua primeira batalha, é ferido por uma bala de canhão que o reparte em dois. Uma de suas metades, a direita, é recolhida pelo exército e tratada pelos médicos:

Costuraram, enxertaram, empastaram: sabe-se lá o que fizeram. O fato é que, no dia seguinte, meu tio abriu o único olho, a meia boca, dilatou a narina e respirou. A forte fibra dos Terralba havia resistido. Agora estava vivo e partido ao meio.

De volta à sua terra, esta metade do visconde começa a espalhar o terror com atos de pura maldade, despertando o medo e o ódio dos habitantes da aldeia. Mortes de animais, flores partidas, punições e enforcamentos gratuitos, casas incendiadas – o mal é experimentado em toda sua profundidade e vivenciado como uma forma de conhecimento:

– Assim, se todas as coisas inteiras pudessem ser partidas ao meio – disse meu tio, agachado sobre o recife, acariciando aquelas metades convulsas de polvo –, todos teriam possibilidade de sair de sua unidade obtusa e ignorante. Eu era inteiro e todas as coisas eram, para mim, naturais e confusas, estúpidas como o ar; acreditava ver tudo, porém era apenas aparência. Se algum dia se transformar na metade de si mesmo, e faço votos que isto lhe aconteça, rapaz, compreenderá coisas que estão além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de si e do mundo, porém a metade que sobrar será mil vezes mais profunda e preciosa. E você também desejará que tudo seja partido ao meio e estropiado à sua semelhança, porque só existe beleza, sabedoria e justiça naquilo que é feito aos pedaços.

Para Medardo, até mesmo o amor é marcado por signos da maldade. Quando “resolve” se apaixonar pela pastora Pamela, não lhe esconde sua disposição para o mal:

– Pamela – suspirou o visconde –, não temos nenhuma outra linguagem para nos falarmos a não ser esta. Todo o encontro de dois seres no mundo é uma dilaceração. Vem comigo, tenho conhecimento deste mal e estará mais segura comigo do que com qualquer outro; porque eu pratico o mal como todos o fazem; contudo, diversamente dos outros, tenho a mão firme.

De um momento para outro, o visconde, surpreendendo a todos, passa a se mostrar bondoso e homem de grande generosidade, praticando atos de abnegação e caridade. Desfeita a confusão, reconhece-se a metade esquerda de Medardo. Esta metade do visconde havia sido recolhida do campo de batalha por dois eremitas que o salvaram, cuidando dele e restituindo-lhe as forças. De volta à casa, também se apaixona por Pamela, com quem compartilha a mudança de valores em sua vida:

– Ah, Pamela, esta é a virtude de um ser partido ao meio: entender o sofrimento de cada pessoa e coisa do mundo diante da própria imperfeição. Eu estava inteiro e não entendia, movimentava-se surdo e incomunicável entre os sofrimentos e as feridas disseminados por todos os lados. Pamela, não sou apenas eu um ser dividido e dilacerado, mas você também o é, assim como todo mundo. Portanto, possuo agora uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e todas as carências do mundo. Se vier comigo, Pamela, aprenderá a tolerar os males de cada um e a curar os seus ao curar os dos outros.

Uma vez reconhecida a dupla e partida natureza do visconde Medardo, atos extremos de maldade alternam-se com atos extremos de bondade – ambos provocando a ira e o descontentamento dos habitantes. Se, de um lado, a perversidade com a qual já estavam acostumados ainda os assustava, de outro, a generosidade excessiva tornava-se um fardo na medida em que interferia nas relações convencionais e tentava impor uma nova moralidade.

Assim passavam os dias em Terralba. Nossos sentimentos ficavam dúbios e indefinidos, de vez que nos sentíamos como que perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas.

O desejo de ambas as partes do visconde de se casar com Pamela levou a um confronto direto entre o “Bom” – a metade esquerda – e o “Infeliz” – a metade direita. Durante o duelo, em que “o homem investia contra si mesmo”, um acaba ferindo o outro, reabrindo as cicatrizes que haviam segurado cada metade como um todo. Salvos pelo médico Trelawney, os dois tornam a ser um:

Assim meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, ou seja, aparentemente igual àquele que era antes de ser partido ao meio. Contudo, adquiriu a experiência de uma e de outra metade recolocadas juntas, por isto devia ser muito sábio.

Lembrando uma fábula, a história d’O visconde partido ao meio apresenta uma espécie de moral, que parece dizer que a verdadeira inteireza do homem está em aceitar a dualidade inerente ao ser humano. A aparente simplicidade da fábula, com seus personagens planos, quase alegóricos – o sobrinho-narrador, os leprosos, os huguenotes, o doutor Trelawney, o carpinteiro, a babá Sebastiana, a pastora Pamela – atinge a profundidade da reflexão sobre a condição do homem enquanto ser dilacerado. O drama do visconde Medardo di Terralba traduz, de maneira simbólica, a angústia do homem dividido em si mesmo e incompleto. O conflito dos opostos, com cada parte representando um modo próprio de estar no mundo, aponta para a necessidade de assimilar internamente o que é contrário, e, portanto, complementar, para a reconstrução de uma totalidade.
O fantástico e o absurdo são as formas encontradas por Italo Calvino para expressar as ambigüidades e inquietações humanas. O escritor, por meio de imagens e situações absurdas e de uma linguagem permeada de símbolos, relativiza todos os radicalismos e posturas extremadas ou qualquer visão maniqueísta do homem, e desconstrói a ilusão da unidade do ser. O ser verdadeiramente inteiro é aquele que reconhece sua totalidade nas partes que o constituem. Ou, dito de outro modo e lembrando a estatuazinha de gesso de Manuel Bandeira, só é inteiro o que se partiu.

O VISCONDE PARTIDO AO MEIO
AUTOR: ITALO CALVINO
TRADUÇÃO: WIMA FREITAS RONALD DE CARVALHO
EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS
DATA: 1996
NÚMERO DE PÁGINAS: 100

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Quando a ficção encontra a realidade

Quando Nietzsche chorou, do escritor e psiquiatra norte-americano Irvin D. Yalom, é um romance que narra um encontro fictício entre o médico Josef Breuer e o filósofo Friedrich Nietzsche. A trama se passa no final do ano de 1882, às vésperas da criação da psicanálise por Sigmund Freud, outro personagem do livro. O encontro é fictício, os personagens são reais.
Josef Breuer, renomado médico vienense, é procurado pela jovem Lou Salomé para que cure a doença de seu amigo: o desespero. Conhecendo os resultados obtidos com a terapia da conversa realizada por Breuer no tratamento de uma paciente que sofre de histeria, Lou acredita na possibilidade de aplicar este mesmo método na cura do desespero humano. Impelido pelo desafio médico e pela própria postura de Lou, Breuer acaba aceitando. A condição do tratamento era que o paciente não soubesse que estaria sendo tratado. A justificativa do encontro seriam os inúmeros males físicos que Nietzsche de fato sofria.
Desde o primeiro encontro, dá-se um verdadeiro embate filosófico entre médico e paciente, prenunciando o tom de todo o romance. A linguagem acompanha a agilidade dos diálogos. A astúcia e inteligência de Breuer confrontam-se com a aspereza e genialidade de Nietzsche. Fiel à sua filosofia e ao modo de vida que a partir dela elegeu, o filósofo surpreende e, ao mesmo tempo, encanta Breuer:

E a forma como Nietzsche ousava dizer as coisas! Imagine! Dizer que a esperança é o maior dos males! Que Deus está morto! Que a verdade é um erro sem o qual não conseguimos viver! Que os inimigos da verdade não são as mentiras, mas as convicções! Que a recompensa final dos mortos é não morrer mais! Que os médicos não têm direito de privar um homem de sua própria morte! Pensamentos malignos! Debatera com Nietzsche cada um deles. Contudo, fora um pseudodebate: no fundo do coração, sabia que Nietzsche estava certo. (p. 108)

Aos poucos, a curiosidade e o fascínio de um sobre o outro vão crescendo e estabelecendo uma forma de relacionamento médico-paciente nada usual.
O ponto de virada da trama é o momento em que, conhecido o diagnóstico da doença de Nietzsche – a enxaqueca – e proposto um tratamento – internação em uma clínica com visitas diárias de Breuer –, o filósofo, mais uma vez aferrado a seus princípios e a seu projeto de vida, se recusa a aceitar:

– O senhor olhou os meus livros. Compreende que escrevo não porque seja inteligente ou erudito. Não, é porque tenho a ousadia, a propensão de me apartar do conforto do rebanho e de encarar inclinações fortes e maléficas. Investigação e ciência começam pela descrença. No entanto, a descrença é inerentemente estressante! Só o forte consegue tolerá-la. Sabe qual é a verdadeira questão para um pensador? – Não esperou por uma resposta. – A verdadeira questão é: quanta verdade consigo suportar? Não é ocupação para aqueles de seus pacientes que desejam eliminar o estresse, viver uma vida tranqüila. (p. 140)

A partir da recusa, que colocaria fim a todo o embuste para tratar os problemas psicológicos de Nietzsche, Breuer sugere uma troca: ele cuidaria do corpo do filósofo enquanto este cuidaria de sua alma. Intrigado pela proposta, Nietzsche aceita, e juntos começam a dar os primeiros passos no tratamento do desespero, por meio daquilo que mais tarde se tornaria a psicanálise.
A cada encontro, novas descobertas são realizadas. O princípio é a conversa aberta e desmedida sobre todos os processos internos – pensamentos e sentimentos são colocados a nu, em uma verdadeira “limpeza de chaminé”. A “sentença de granito” de Nietzsche – “Torna-te quem tu és” – é a guia-mestra do processo de conhecimento de si mesmo. A frase ressalta também a importância das escolhas e da responsabilidade de viver a vida a partir deste conhecimento. Os resultados surpreendem e a aproximação entre a “medicina da angústia” e a filosofia torna-se mais forte na medida em que ambas confluem para os mesmos grandes questionamentos:

Temos que nos voltar para o significado. O sintoma não passa de um mensageiro com a notícia de que a Angst está irrompendo das profundezas do ser! Preocupações profundas com a finitude, com a morte de Deus, com o isolamento, com o propósito da vida, com a liberdade – preocupações profundas trancafiadas por toda uma vida – agora rompem suas cadeias e batem às portas e janelas da mente. Elas demandam ser ouvidas. Não apenas ouvidas, mas vividas! (p. 310)

A vivência real e profunda destas preocupações é compartilhada entre médico e paciente. Mas quem é o médico e quem é o paciente? Não apenas a troca de papéis, mas principalmente a empatia mútua – afinal os problemas dos dois eram os mesmos e a duplicidade de suas ações e intenções não esconde este fato por muito tempo – acaba por fortalecer um relacionamento baseado na confiança e na busca pela verdade. Médico e paciente tornam-se, por fim, amigos.
Quando Nitzsche chorou é um romance fascinante sob vários aspectos. A combinação entre ficção e realidade é um de seus ingredientes mais atrativos e intrigantes. Se, de um lado, acompanhamos o surgimento da psicanálise – e neste sentido, é interessante a “participação especial” de Freud como personagem secundário, jovem estudante de medicina e discípulo de Breuer –, de outro, somos convidados a adentrar os caminhos da filosofia e conhecer um pouco, ainda que por meios literários e fictícios, o grande pensador Friedrich Nietzsche.

Alguns aforismos do personagem Nietzsche:
“Nossa responsabilidade para com a vida é criar o superior, não reproduzir o inferior.”
“É mais fácil, muito mais fácil, obedecer a outro do que dirigir a si mesmo.”
“É preciso ter caos e frenesi dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”
“(…) os amantes da verdade não temem águas tempestuosas ou turvas. O que tememos são águas rasas.”
“Uma perspectiva cósmica sempre atenua a tragédia. Se subirmos bastante, alcançaremos uma altura da qual a tragédia deixará de parecer trágica.”
“Viver de maneira segura é perigoso.”
“Torna-te quem tu és.”


QUANDO NIETZSCHE CHOROU
AUTOR: IRVIN D. YALOM
EDITORA: EDIOURO
DATA:2005
NÚMERO DE PÁGINAS: 409