quinta-feira, 29 de maio de 2008

Um papo e um poema











Poema do Menino Jesus
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
O Guardador de Rebanhos - VIII (08-03-1914)
Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem.
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz.
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina.
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
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Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

sábado, 17 de maio de 2008

A história da História

José Saramago é, atualmente, um dos principais nomes da literatura portuguesa, tendo recebido o Prêmio Nobel em 1998. Dono de uma linguagem e um estilo próprios, que já se tornaram sua marca repentindo-se em todos os seus trabalhos, o escritor é também conhecido por sua postura fortemente crítica e contestadora. Entre suas principais obras, estão Memorial do Convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de pedra (1986), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995), entre outras.
Em História do cerco de Lisboa, romance publicado em 1989, Saramago narra a história do revisor Raimundo Silva que, ao revisar um livro sobre o cerco de Lisboa, decide acrescentar um "não" ao texto, passando a dizer que os cruzados não ajudaram os portugueses na tomada de Lisboa, ocupada pelos mouros. A partir daí, o romance passa a contar a história da História, questionando e descontruindo o conceito de verdade histórica.
A História do Cerco de Lisboa, ao mesmo tempo discurso ficcional e historiográfico, representa, tanto para o escritor-autor José Saramago quanto para o escritor-personagem Raimundo Silva, uma tentativa de fazer história. Estaria, assim, no cerne da própria estrutura do romance a problematização da História e de sua arbitrariedade, ou seja, do conhecimento histórico tal como é construído e legitimado pela escrita.
O questionamento da História ganha forma, na escrita do romance, não apenas pela incorporação de alguns elementos descritivos tradicionais do considerado romance histórico – a atenção ao pormenor, a fidelidade e abundância de detalhes históricos, a reconstituição de personagens e ambientes de épocas passadas – mas sobretudo através da subversão do modelo clássico de narração histórica. Entre os principais aspectos desta nova escrita histórica, estão a desconstrução do realismo, através, principalmente dos anacronismos e sincretismos que permeiam a narrativa; a inversão de temas e tratamentos épicos; a dessacralização dos ditos heróis e introdução e valorização de personagens marginais; ênfase na escolha dos fatos históricos a serem narrados, apontando, não para a verdade, mas para a coerência e verossimilhança do discurso histórico; o uso da ironia e o humor dos comentários; a consciência da linguagem e a subjetividade do discurso. Além destes elementos inovadores, a “nova história” realizada por Saramago e Raimundo Silva diferencia-se do romance histórico na medida em que o olhar para o passado perde o caráter nostálgico ou pitoresco, para constituir uma abordagem crítica e reflexiva que, apoiada no presente, procura compreendê-lo.
Com a leitura, podemos acompanhar, passo a passo, a escrita do romance, de ambos os romances (a História de Saramago e a História de Raimundo Silva), e a relativa transparência deste processo acaba por nos revelar que não se trata, em nenhum dos casos, nem de romance histórico, nem de História romanceada, mas de um fazer histórico que, por necessidade e uma insatisfação intrínseca , acolhe uma roupagem literária que lhe dê significação e alguma completude.
A subversão constitui o próprio ato de Raimundo Silva, ou seja, o de acrescentar, consciente e deliberadamente, um “não” à história oficial, negando, assim, o auxílio dos cruzados na tomada de Lisboa aos mouros por parte dos portugueses. A revisão, ou erro (e, a essa altura, estes conceitos já se relativizaram), além de acarretar conseqüências para a própria vida do discreto e responsável revisor (se não se pode alterar o fim da história, uma vez que os portugueses efetivamente tomaram Lisboa, é possível mudar os rumos da sua história pessoal: a experiência amorosa, a escrita da nova versão da História), ganha maior significação no plano da obra como um todo, por tornar-se a revisão do conceito de História, sugerindo a possibilidade de diversas e diferentes leituras e escritas, na tentativa, esta sempre a mesma, de resgatar um tempo perdido para compreender o tempo presente:
Afinal, é apenas um romance entre os romances, não tem que preocupar-se mais com introduzir nele o que já se encontra, porque livros destes, as ficções que contam, fazem-se, todos e todas, com uma continuada dúvida, com um afirmar reticente, sobretudo a inquietação de saber que nada é verdade e ser preciso fingir que o é , ao menos por um tempo, até não se poder resistir à evidência inapagável da mudança, então vai-se ao tempo que passou, que só ele é verdadeiramente tempo, e tenta-se reconstituir o momento que não soubemos reconhecer, que passava enquanto reconstituíamos outro, e assim por diante, momento após momento , todo o romance é isso, desespero, intento frustrado de que o passado não seja coisa definitivamente perdida.

A perspectiva do escritor-personagem Raimundo Silva é compartilhada pelo escritor-autor José Saramago:

Olhando o passado, a minha impressão mais forte é a de estarmos perante um imenso tempo perdido. A História, e também o Romance que procura para seu tema fundamental a História, são, de alguma maneira, viagens através daquele tempo, tentativas de itinerários, todas com um só objetivo, sempre igual: o conhecimento do que a cada momento vamos sendo.


HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA
AUTOR: JOSÉ SARAMAGO
ANO: 1989
NÚMERO DE PÁGINAS: 352