segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa é considerado um dos principais nomes da literatura em língua portuguesa. Dono de um estilo único, conseguiu realizar a síntese do regional com o universal e elevar a linguagem a um patamar talvez nunca antes atingido pela prosa brasileira. Médico e diplomata, o escritor nasceu em Cordisburgo (MG), em 1908, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1967, três dias após tomar posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Guimarães Rosa aproveitava suas viagens como médico pelo interior de Minas Gerais para fazer apontamentos e anotações de relatos, histórias e particularidades da linguagem e do homem do sertão. Desta matéria-prima, nasceram obras como Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia: Terceiras Estórias (1967).
Grande Sertão: Veredas é, em geral, apontado como o maior romance brasileiro. Narra a história de Riobaldo, fazendeiro e ex-jagunço, contada por ele mesmo a um interlocutor que, embora não se manifeste, está sempre presente e pode ser notado por meio de referências do narrador (“O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço.”). A narrativa inicia-se já como um diálogo:

– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não. Deus esteja.

Além de se estabelecer como um relato direcionado a alguém, a voz em primeira pessoa também assegura a verossimilhança do romance, tornando-nos, leitores, novos interlocutores neste diálogo. Porém, o narrador não esconde a dificuldade de seu narrar:

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não.

O romance é uma grande rememoração do passado do narrador, desde sua infância, a vida com a mãe, o padrinho Selerico Mendes (que depois descobriu ser seu pai), a fuga de casa, o encontro com Zé Bebelo, a entrada para a jagunçagem. Este é o argumento da narrativa: um bando de jagunços, do qual Riobaldo faz parte, tenta vingar a morte de seu chefe, Joca Ramiro, causada por um bando rival. Tem-se, então, a narração de lutas, viagens e muitos episódios que revelam traços e peculiaridades da figura do jagunço e aspectos da vida no sertão de Minas Gerais.
A máxima “Viver é muito perigoso”, repetida ao longo da narrativa como um refrão, pontua um tema fortemente presente no romance: a coragem. As dúvidas acerca do medo e da coragem são um dos principais questionamentos de Riobaldo:

O que o medo é: um produzido dentro da gente, um depositado; e que às horas remexe, sacoleja, a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só estão é fornecendo espelho. A vida é para esse sarro de medo se destruir; jagunço sabe. Outros contam de outra maneira.

O medo, assumido e encarado, acaba tornando-se força e transmutando-se em ação:

(...) só o medo da guerra é que vira valentia... Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte...

E a coragem transforma-se em ato de vontade:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim, de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem.

A tentativa de compreender o medo e a coragem está diretamente relacionada aos questionamentos sobre Deus e o diabo:

Como não ter Deus?! (...) O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.

Por meio destes questionamentos, o narrador procura esclarecer sua incerteza sobre o pacto que teria feito com o diabo para que tivesse coragem. A partir da noite do suposto pacto, Riobaldo transformou-se, tornou-se mais forte e assumiu a chefia do bando. Acompanhado dele estava sempre o amigo Diadorim, moço delicado ,porém valente, por quem Riobaldo acaba tendo sentimentos amorosos que não consegue entender:

De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de ser possível dele gostar como queira, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre.

O conflito vivido por Riobaldo, sem antecipar a grande revelação final, reitera o tema do amor como um das principais do romance:

Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.

Amor, vida e morte, medo e coragem, Deus e o diabo – a narração de Riobaldo torna-se uma grande travessia por veredas que, no fundo são o próprio homem. O romance toma a forma de uma epopéia acerca da condição humana.

A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois fiquei sabendo, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

Na travessia da construção literária, Guimarães Rosa conseguiu transcender o elemento regional extraindo dele o universal. O seu regionalismo – que não segue a tendência regionalista, à maneira dos romances de José Lins do Rego ou Graciliano Ramos, por exemplo – transforma o aspecto local – o Sertão – em metáfora da existência humana. Por meio dele, o autor expõe traços da cultura brasileira, sem, contudo, ser documental. A riqueza poética da linguagem e do estilo de Rosa alcança uma naturalidade que faz com que o Sertão possa ser qualquer lugar. Por outro lado, os detalhes locais também enriquecem a narrativa. A começar pela descrição das paisagens do Sertão de Minas Gerais, em que o autor descortina toda uma realidade natural e geográfica desconhecida. Em cada paragem, em cada trecho da travessia, um lugar novo, com suas peculiaridades. A descrição do homem do Sertão, suas crenças e costumes, seu modo de ser e de viver. A figura do jagunço – humanizada. E a linguagem. Guimarães Rosa incorporou o falar regional e, por meio da reelaboração estética, conseguiu unir o popular e o erudito, dando expressão a uma linguagem única. A reinvenção da forma dá-se a partir de vários elementos: o uso de máximas e aforismos, a apropriação e modificação de provérbios e ditados populares, a transgressão da língua, transformando estruturas sintáticas e criando neologismos. Estes elementos, assim como os demais aspectos culturais presentes na obra, possibilitam uma nova maneira de apreender o mundo, levando o leitor a descobertas e deslumbramentos, que não estão apenas no Sertão, estão no homem.