sábado, 17 de maio de 2008

A história da História

José Saramago é, atualmente, um dos principais nomes da literatura portuguesa, tendo recebido o Prêmio Nobel em 1998. Dono de uma linguagem e um estilo próprios, que já se tornaram sua marca repentindo-se em todos os seus trabalhos, o escritor é também conhecido por sua postura fortemente crítica e contestadora. Entre suas principais obras, estão Memorial do Convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de pedra (1986), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995), entre outras.
Em História do cerco de Lisboa, romance publicado em 1989, Saramago narra a história do revisor Raimundo Silva que, ao revisar um livro sobre o cerco de Lisboa, decide acrescentar um "não" ao texto, passando a dizer que os cruzados não ajudaram os portugueses na tomada de Lisboa, ocupada pelos mouros. A partir daí, o romance passa a contar a história da História, questionando e descontruindo o conceito de verdade histórica.
A História do Cerco de Lisboa, ao mesmo tempo discurso ficcional e historiográfico, representa, tanto para o escritor-autor José Saramago quanto para o escritor-personagem Raimundo Silva, uma tentativa de fazer história. Estaria, assim, no cerne da própria estrutura do romance a problematização da História e de sua arbitrariedade, ou seja, do conhecimento histórico tal como é construído e legitimado pela escrita.
O questionamento da História ganha forma, na escrita do romance, não apenas pela incorporação de alguns elementos descritivos tradicionais do considerado romance histórico – a atenção ao pormenor, a fidelidade e abundância de detalhes históricos, a reconstituição de personagens e ambientes de épocas passadas – mas sobretudo através da subversão do modelo clássico de narração histórica. Entre os principais aspectos desta nova escrita histórica, estão a desconstrução do realismo, através, principalmente dos anacronismos e sincretismos que permeiam a narrativa; a inversão de temas e tratamentos épicos; a dessacralização dos ditos heróis e introdução e valorização de personagens marginais; ênfase na escolha dos fatos históricos a serem narrados, apontando, não para a verdade, mas para a coerência e verossimilhança do discurso histórico; o uso da ironia e o humor dos comentários; a consciência da linguagem e a subjetividade do discurso. Além destes elementos inovadores, a “nova história” realizada por Saramago e Raimundo Silva diferencia-se do romance histórico na medida em que o olhar para o passado perde o caráter nostálgico ou pitoresco, para constituir uma abordagem crítica e reflexiva que, apoiada no presente, procura compreendê-lo.
Com a leitura, podemos acompanhar, passo a passo, a escrita do romance, de ambos os romances (a História de Saramago e a História de Raimundo Silva), e a relativa transparência deste processo acaba por nos revelar que não se trata, em nenhum dos casos, nem de romance histórico, nem de História romanceada, mas de um fazer histórico que, por necessidade e uma insatisfação intrínseca , acolhe uma roupagem literária que lhe dê significação e alguma completude.
A subversão constitui o próprio ato de Raimundo Silva, ou seja, o de acrescentar, consciente e deliberadamente, um “não” à história oficial, negando, assim, o auxílio dos cruzados na tomada de Lisboa aos mouros por parte dos portugueses. A revisão, ou erro (e, a essa altura, estes conceitos já se relativizaram), além de acarretar conseqüências para a própria vida do discreto e responsável revisor (se não se pode alterar o fim da história, uma vez que os portugueses efetivamente tomaram Lisboa, é possível mudar os rumos da sua história pessoal: a experiência amorosa, a escrita da nova versão da História), ganha maior significação no plano da obra como um todo, por tornar-se a revisão do conceito de História, sugerindo a possibilidade de diversas e diferentes leituras e escritas, na tentativa, esta sempre a mesma, de resgatar um tempo perdido para compreender o tempo presente:
Afinal, é apenas um romance entre os romances, não tem que preocupar-se mais com introduzir nele o que já se encontra, porque livros destes, as ficções que contam, fazem-se, todos e todas, com uma continuada dúvida, com um afirmar reticente, sobretudo a inquietação de saber que nada é verdade e ser preciso fingir que o é , ao menos por um tempo, até não se poder resistir à evidência inapagável da mudança, então vai-se ao tempo que passou, que só ele é verdadeiramente tempo, e tenta-se reconstituir o momento que não soubemos reconhecer, que passava enquanto reconstituíamos outro, e assim por diante, momento após momento , todo o romance é isso, desespero, intento frustrado de que o passado não seja coisa definitivamente perdida.

A perspectiva do escritor-personagem Raimundo Silva é compartilhada pelo escritor-autor José Saramago:

Olhando o passado, a minha impressão mais forte é a de estarmos perante um imenso tempo perdido. A História, e também o Romance que procura para seu tema fundamental a História, são, de alguma maneira, viagens através daquele tempo, tentativas de itinerários, todas com um só objetivo, sempre igual: o conhecimento do que a cada momento vamos sendo.


HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA
AUTOR: JOSÉ SARAMAGO
ANO: 1989
NÚMERO DE PÁGINAS: 352

Um comentário:

Unknown disse...

Mesmo com aquelas que já se transformaram nas "fórmulas do sucesso", o Saramago ainda consegue desconstruir as idéias, como no Evangelho segundo Jesus Cristo, por exemplo. Aí, sim, o chute no estômago compensa a linguagem já enjoativa.