segunda-feira, 21 de abril de 2008

A humanidade possível

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) é sempre lembrado por sua mais conhecida obra, O Pequeno Príncipe, que, ainda hoje, encanta e seduz inúmeros leitores em todo o mundo. No entanto, o piloto e escritor francês teve outras obras publicadas, como Correio Sul (1928), Vôo da Noite (1931), Piloto de Guerra (1942), entre outras.
Em Terra dos Homens, livro publicado em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Saint-Exupéry narra e descreve os elementos essenciais que incorporam seu ofício de piloto de linha dos correios franceses. Assim, são apresentados os capítulos: A linha, Os companheiros, O avião, O avião e o planeta, Oásis, No deserto, No centro do deserto, Os homens.
Embora narre suas aventuras como piloto de linha, Terra dos Homens não é um livro de aventuras. É um retrato da experiência humana sobre a terra. A narração de um vôo ou dos dias em que esteve perdido em meio ao deserto, e a descrição de um avião, de uma paisagem ou de um homem, são sempre feitas de um modo extremamente poético que consegue exprimir um respeito e uma reverência profunda à essência daquilo que constitui o ser humano e a vida. Apesar de estar acostumado a olhar do céu a terra dos homens, é no chão, em contato com estes homens, que o poeta-aviador descobre que "só há um luxo verdadeiro, o das relações humanas".
Fazendo de sua própria vida e de sua própria história a matéria de sua escrita, Saint-Exupéry encontra a revelação de novas e sutis realidades a cada traçado do caminho e transmite estas revelações de maneira sublime.
É impossível não lembrar a narrativa d' O Pequeno Príncipe ao se deparar com frases como esta: "A experiência mostra que amar não é olhar um para o outro, mas olhar junto na mesma direção." - frases que, a exemplo de "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" ou "O essencial é invisível aos olhos", de tão repetidas, tornam-se até mesmo banais. No entando, a qualidade das imagens, da linguagem, da visão poética e porém simplificada das coisas, supera as comparações e as expectativas, surpreendendo e encantando a cada página.
Depois de dois dias perdido no deserto, sem comida e sem água, a descoberta de uma laranja ilumina toda uma realidade:

Deitado junto ao nosso fogo noturno contemplo a fruta luminosa e digo para mim mesmo: "Os homens não sabem o que é uma laranja..." Digo também: "Estamos condenados, mas agora também esta certeza não me estraga o prazer. Esta metade de laranja que tenho na mão é uma das maiores alegrias de minha vida..." Estico-me de costas, chupo minha fruta, conto as estrelas cadentes. E aqui estou, por um minuto, infinitamente feliz. Penso ainda: "Não podemos compreender o mundo em que vivemos se não nos encerramos em nós mesmos". Só hoje compreendo o cigarro e o copo de rum do condenado à morte. Não concebia como ele podia aceitar essa miséria. Contudo ele sente nisso um grande prazer. A gente pensa que ele é corajoso porque sorri. Mas ele sorri porque bebe seu rum. Não sabemos que ele mudou de perspectiva e que fez, da derradeira hora, uma vida humana.

O olhar poético não impede, porém, que Saint-Exupéry lance sua crítica à tolice dos homens:

Não compreendo mais essas populações dos trens de subúrbio, esses homens que pensam que são homens e que entretanto estão reduzidos por uma pressão que eles mesmos não sentem, como formigas, ao uso que deles se faz. Como enchem eles, quando estão livres, seus absurdos pequenos domingos?

Diante da iminência da morte de sede no deserto, o escritor encontra a serenidade da realização humana em vida, afinal, "o que dá um sentido à vida dá um sentido à morte":

Quanto a mim, sou feliz na minha profissão. Sinto-me um camponês do ar. No trem de subúrbio sofro uma agonia bem mais amarga do que esta. Aqui, feitas as contas, que luxo!
Não me queixo. Joguei, perdi. Faz parte de minha profissão. Mas assim mesmo eu respirei o vento do mar!

As preocupações mesquinhas, a capacidade para a guerra, a miséria - o lamento final do "poeta do céu" diz respeito a tudo aquilo que cerceia a humanidade no homem, tirando-lhe todo e qualquer sentido.

O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.

Terra dos Homens é um belo relato da simplicidade possível, da grandeza possível, da humanidade possível.



TERRA DOS HOMENS
AUTOR: ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
EDITORA: NOVA FRONTEIRA
DATA: 2006
NÚMERO DE PÁGINAS: 144

4 comentários:

Gil Nuno Vaz disse...

Rose

Não sei se foi sua intenção, mas o blog está virando um mosaico de origens literárias: o brasileiro Murilo, o francês Exupery, o alemão Hesse. E isso ficou muito interessante. Sem contar o seu texto, que é muito fluente, reflexivo e didático. Parabéns.

Gil

Blog Outrock disse...

Oi Rose!
Bom, depois de 'passear' pelo seu blog inúmeras vezes, agora, resolvi comentar ;)

Eu sou do tipo da pessoa que só sabe uma ou ooooutra obra de determinado autor. Pra mim, o Saint-Exupéry será sempre o escritor do Pequeno Príncipe e só =/
Assim como o Hermann Hesse será sempre o autor do Lobo da Estepe de dane-se suas outras obras.
que falha a minha!
Preciso conhecer mais... =D

Mas... vejamos pelo lado bom. Depois de ler seu post, fiquei super empolgada em ler "Terra dos Homens"... gostei da idéia dos retratos da experiência humana sobre a terra.

Enfim, acho que é isso.
Parabéns pela iniciativa do blog. Sempre é bom ter espaços destinados a literatura ;)

Beijão!
Bruna Rossifini

Rafaelle Donzalisky disse...

Rose,

me deu saudades dos seus conselhos literários, dos livros emprestados guardados na prateleira subindo as escadas,num mundo entreaberto as inúmeras possibilidades de ser na mesma vida.
parabéns!
e aguarde uma visita minha!

bjos

Unknown disse...

Sei que você se encantou com esse livro, mas eu ainda prefiro o Pequeno Príncipe.
Seu texto, sedutor como sempre.