quinta-feira, 10 de abril de 2008

Uma fábula da condição humana

“A consciência da laceração implica o desejo de harmonia”
(Italo Calvino)

O visconde partido ao meio, romance publicado em 1951, faz parte, juntamente com O barão empoleirado (1957) e O cavaleiro inexistente (1959), da trilogia Os nossos antepassados, de Italo Calvino. O escritor, nascido em Cuba e criado na Itália, é considerado um dos principais nomes da literatura mundial do pós-guerra, e conhecido por obras como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972), Se um viajante numa noite de inverno (1979), entre outras. O visconde partido ao meio é a história de um homem dividido. Literalmente. O visconde Medardo di Terralba alista-se na guerra dos cristãos contra os turcos e, em sua primeira batalha, é ferido por uma bala de canhão que o reparte em dois. Uma de suas metades, a direita, é recolhida pelo exército e tratada pelos médicos:

Costuraram, enxertaram, empastaram: sabe-se lá o que fizeram. O fato é que, no dia seguinte, meu tio abriu o único olho, a meia boca, dilatou a narina e respirou. A forte fibra dos Terralba havia resistido. Agora estava vivo e partido ao meio.

De volta à sua terra, esta metade do visconde começa a espalhar o terror com atos de pura maldade, despertando o medo e o ódio dos habitantes da aldeia. Mortes de animais, flores partidas, punições e enforcamentos gratuitos, casas incendiadas – o mal é experimentado em toda sua profundidade e vivenciado como uma forma de conhecimento:

– Assim, se todas as coisas inteiras pudessem ser partidas ao meio – disse meu tio, agachado sobre o recife, acariciando aquelas metades convulsas de polvo –, todos teriam possibilidade de sair de sua unidade obtusa e ignorante. Eu era inteiro e todas as coisas eram, para mim, naturais e confusas, estúpidas como o ar; acreditava ver tudo, porém era apenas aparência. Se algum dia se transformar na metade de si mesmo, e faço votos que isto lhe aconteça, rapaz, compreenderá coisas que estão além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de si e do mundo, porém a metade que sobrar será mil vezes mais profunda e preciosa. E você também desejará que tudo seja partido ao meio e estropiado à sua semelhança, porque só existe beleza, sabedoria e justiça naquilo que é feito aos pedaços.

Para Medardo, até mesmo o amor é marcado por signos da maldade. Quando “resolve” se apaixonar pela pastora Pamela, não lhe esconde sua disposição para o mal:

– Pamela – suspirou o visconde –, não temos nenhuma outra linguagem para nos falarmos a não ser esta. Todo o encontro de dois seres no mundo é uma dilaceração. Vem comigo, tenho conhecimento deste mal e estará mais segura comigo do que com qualquer outro; porque eu pratico o mal como todos o fazem; contudo, diversamente dos outros, tenho a mão firme.

De um momento para outro, o visconde, surpreendendo a todos, passa a se mostrar bondoso e homem de grande generosidade, praticando atos de abnegação e caridade. Desfeita a confusão, reconhece-se a metade esquerda de Medardo. Esta metade do visconde havia sido recolhida do campo de batalha por dois eremitas que o salvaram, cuidando dele e restituindo-lhe as forças. De volta à casa, também se apaixona por Pamela, com quem compartilha a mudança de valores em sua vida:

– Ah, Pamela, esta é a virtude de um ser partido ao meio: entender o sofrimento de cada pessoa e coisa do mundo diante da própria imperfeição. Eu estava inteiro e não entendia, movimentava-se surdo e incomunicável entre os sofrimentos e as feridas disseminados por todos os lados. Pamela, não sou apenas eu um ser dividido e dilacerado, mas você também o é, assim como todo mundo. Portanto, possuo agora uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e todas as carências do mundo. Se vier comigo, Pamela, aprenderá a tolerar os males de cada um e a curar os seus ao curar os dos outros.

Uma vez reconhecida a dupla e partida natureza do visconde Medardo, atos extremos de maldade alternam-se com atos extremos de bondade – ambos provocando a ira e o descontentamento dos habitantes. Se, de um lado, a perversidade com a qual já estavam acostumados ainda os assustava, de outro, a generosidade excessiva tornava-se um fardo na medida em que interferia nas relações convencionais e tentava impor uma nova moralidade.

Assim passavam os dias em Terralba. Nossos sentimentos ficavam dúbios e indefinidos, de vez que nos sentíamos como que perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas.

O desejo de ambas as partes do visconde de se casar com Pamela levou a um confronto direto entre o “Bom” – a metade esquerda – e o “Infeliz” – a metade direita. Durante o duelo, em que “o homem investia contra si mesmo”, um acaba ferindo o outro, reabrindo as cicatrizes que haviam segurado cada metade como um todo. Salvos pelo médico Trelawney, os dois tornam a ser um:

Assim meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, ou seja, aparentemente igual àquele que era antes de ser partido ao meio. Contudo, adquiriu a experiência de uma e de outra metade recolocadas juntas, por isto devia ser muito sábio.

Lembrando uma fábula, a história d’O visconde partido ao meio apresenta uma espécie de moral, que parece dizer que a verdadeira inteireza do homem está em aceitar a dualidade inerente ao ser humano. A aparente simplicidade da fábula, com seus personagens planos, quase alegóricos – o sobrinho-narrador, os leprosos, os huguenotes, o doutor Trelawney, o carpinteiro, a babá Sebastiana, a pastora Pamela – atinge a profundidade da reflexão sobre a condição do homem enquanto ser dilacerado. O drama do visconde Medardo di Terralba traduz, de maneira simbólica, a angústia do homem dividido em si mesmo e incompleto. O conflito dos opostos, com cada parte representando um modo próprio de estar no mundo, aponta para a necessidade de assimilar internamente o que é contrário, e, portanto, complementar, para a reconstrução de uma totalidade.
O fantástico e o absurdo são as formas encontradas por Italo Calvino para expressar as ambigüidades e inquietações humanas. O escritor, por meio de imagens e situações absurdas e de uma linguagem permeada de símbolos, relativiza todos os radicalismos e posturas extremadas ou qualquer visão maniqueísta do homem, e desconstrói a ilusão da unidade do ser. O ser verdadeiramente inteiro é aquele que reconhece sua totalidade nas partes que o constituem. Ou, dito de outro modo e lembrando a estatuazinha de gesso de Manuel Bandeira, só é inteiro o que se partiu.

O VISCONDE PARTIDO AO MEIO
AUTOR: ITALO CALVINO
TRADUÇÃO: WIMA FREITAS RONALD DE CARVALHO
EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS
DATA: 1996
NÚMERO DE PÁGINAS: 100

Um comentário:

Unknown disse...

Rosee!

adorei o seu blog, muito bom pra adquirir novos conhecimentos x)
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beijos s2