quarta-feira, 2 de abril de 2008

Quando a ficção encontra a realidade

Quando Nietzsche chorou, do escritor e psiquiatra norte-americano Irvin D. Yalom, é um romance que narra um encontro fictício entre o médico Josef Breuer e o filósofo Friedrich Nietzsche. A trama se passa no final do ano de 1882, às vésperas da criação da psicanálise por Sigmund Freud, outro personagem do livro. O encontro é fictício, os personagens são reais.
Josef Breuer, renomado médico vienense, é procurado pela jovem Lou Salomé para que cure a doença de seu amigo: o desespero. Conhecendo os resultados obtidos com a terapia da conversa realizada por Breuer no tratamento de uma paciente que sofre de histeria, Lou acredita na possibilidade de aplicar este mesmo método na cura do desespero humano. Impelido pelo desafio médico e pela própria postura de Lou, Breuer acaba aceitando. A condição do tratamento era que o paciente não soubesse que estaria sendo tratado. A justificativa do encontro seriam os inúmeros males físicos que Nietzsche de fato sofria.
Desde o primeiro encontro, dá-se um verdadeiro embate filosófico entre médico e paciente, prenunciando o tom de todo o romance. A linguagem acompanha a agilidade dos diálogos. A astúcia e inteligência de Breuer confrontam-se com a aspereza e genialidade de Nietzsche. Fiel à sua filosofia e ao modo de vida que a partir dela elegeu, o filósofo surpreende e, ao mesmo tempo, encanta Breuer:

E a forma como Nietzsche ousava dizer as coisas! Imagine! Dizer que a esperança é o maior dos males! Que Deus está morto! Que a verdade é um erro sem o qual não conseguimos viver! Que os inimigos da verdade não são as mentiras, mas as convicções! Que a recompensa final dos mortos é não morrer mais! Que os médicos não têm direito de privar um homem de sua própria morte! Pensamentos malignos! Debatera com Nietzsche cada um deles. Contudo, fora um pseudodebate: no fundo do coração, sabia que Nietzsche estava certo. (p. 108)

Aos poucos, a curiosidade e o fascínio de um sobre o outro vão crescendo e estabelecendo uma forma de relacionamento médico-paciente nada usual.
O ponto de virada da trama é o momento em que, conhecido o diagnóstico da doença de Nietzsche – a enxaqueca – e proposto um tratamento – internação em uma clínica com visitas diárias de Breuer –, o filósofo, mais uma vez aferrado a seus princípios e a seu projeto de vida, se recusa a aceitar:

– O senhor olhou os meus livros. Compreende que escrevo não porque seja inteligente ou erudito. Não, é porque tenho a ousadia, a propensão de me apartar do conforto do rebanho e de encarar inclinações fortes e maléficas. Investigação e ciência começam pela descrença. No entanto, a descrença é inerentemente estressante! Só o forte consegue tolerá-la. Sabe qual é a verdadeira questão para um pensador? – Não esperou por uma resposta. – A verdadeira questão é: quanta verdade consigo suportar? Não é ocupação para aqueles de seus pacientes que desejam eliminar o estresse, viver uma vida tranqüila. (p. 140)

A partir da recusa, que colocaria fim a todo o embuste para tratar os problemas psicológicos de Nietzsche, Breuer sugere uma troca: ele cuidaria do corpo do filósofo enquanto este cuidaria de sua alma. Intrigado pela proposta, Nietzsche aceita, e juntos começam a dar os primeiros passos no tratamento do desespero, por meio daquilo que mais tarde se tornaria a psicanálise.
A cada encontro, novas descobertas são realizadas. O princípio é a conversa aberta e desmedida sobre todos os processos internos – pensamentos e sentimentos são colocados a nu, em uma verdadeira “limpeza de chaminé”. A “sentença de granito” de Nietzsche – “Torna-te quem tu és” – é a guia-mestra do processo de conhecimento de si mesmo. A frase ressalta também a importância das escolhas e da responsabilidade de viver a vida a partir deste conhecimento. Os resultados surpreendem e a aproximação entre a “medicina da angústia” e a filosofia torna-se mais forte na medida em que ambas confluem para os mesmos grandes questionamentos:

Temos que nos voltar para o significado. O sintoma não passa de um mensageiro com a notícia de que a Angst está irrompendo das profundezas do ser! Preocupações profundas com a finitude, com a morte de Deus, com o isolamento, com o propósito da vida, com a liberdade – preocupações profundas trancafiadas por toda uma vida – agora rompem suas cadeias e batem às portas e janelas da mente. Elas demandam ser ouvidas. Não apenas ouvidas, mas vividas! (p. 310)

A vivência real e profunda destas preocupações é compartilhada entre médico e paciente. Mas quem é o médico e quem é o paciente? Não apenas a troca de papéis, mas principalmente a empatia mútua – afinal os problemas dos dois eram os mesmos e a duplicidade de suas ações e intenções não esconde este fato por muito tempo – acaba por fortalecer um relacionamento baseado na confiança e na busca pela verdade. Médico e paciente tornam-se, por fim, amigos.
Quando Nitzsche chorou é um romance fascinante sob vários aspectos. A combinação entre ficção e realidade é um de seus ingredientes mais atrativos e intrigantes. Se, de um lado, acompanhamos o surgimento da psicanálise – e neste sentido, é interessante a “participação especial” de Freud como personagem secundário, jovem estudante de medicina e discípulo de Breuer –, de outro, somos convidados a adentrar os caminhos da filosofia e conhecer um pouco, ainda que por meios literários e fictícios, o grande pensador Friedrich Nietzsche.

Alguns aforismos do personagem Nietzsche:
“Nossa responsabilidade para com a vida é criar o superior, não reproduzir o inferior.”
“É mais fácil, muito mais fácil, obedecer a outro do que dirigir a si mesmo.”
“É preciso ter caos e frenesi dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”
“(…) os amantes da verdade não temem águas tempestuosas ou turvas. O que tememos são águas rasas.”
“Uma perspectiva cósmica sempre atenua a tragédia. Se subirmos bastante, alcançaremos uma altura da qual a tragédia deixará de parecer trágica.”
“Viver de maneira segura é perigoso.”
“Torna-te quem tu és.”


QUANDO NIETZSCHE CHOROU
AUTOR: IRVIN D. YALOM
EDITORA: EDIOURO
DATA:2005
NÚMERO DE PÁGINAS: 409

Um comentário:

Pedro Prado disse...

Há que ser uma heroína para, falando de uma obra de tal talento, conseguir demonstrar o seu tão bem.

Parabéns!